Um barco de esperança singra mares de sangue

Fotos: St. Louis no porto de Havana, em junho de 1939, e seus passageiros desesperançados

Em 1939, um grupo com cerca de 900 judeus fretou um navio, o Saint Louis, para fugir do terrorismo nazista na Alemanha. Supreendentemente, conseguiram zarpar do porto de Hamburgo em maio e rumaram para Cuba, então uma espécie de colônia de férias americana, e lugar que aceitava migrantes europeus.

Seis anos antes, o governo nazista tinha construído o primeiro campo de concentração, Dachau, que recebeu o primeiro grupo de prisioneiros em 22 de março de 1933 – eram comunistas, sociais-democratas, sindicalistas. Cinco anos depois, em apenas em dois dias, 10 e 11 de novembro de 1938, 11 mil judeus foram encarcerados ali.

PRECONCEITO E PERSEGUIÇÃO

Naqueles tempos, várias nações faziam restrições ao povo judeu, considerado “muito capitalista” por uns, ou “muito comunista” por outros, e grupos cristãos os acusavam de ser “o povo que matou Jesus”. As violências cometidas contra hebreus eram toleradas e até vistas como “justas”, por parte do dito “mundo ocidental cristão”.

Neste ambiente de preconceito, perseguições e assassinatos, o St. Louis foi uma janela de esperança. As sociedades de apoio aos israelitas conseguiram vistos para Cuba e encheram o navio de refugiados devidamente documentados. Mas a vida real não lhes sorriu. Naqueles dias o mundo estava às portas da segunda guerra e nenhum país queria ser o primeiro a topar com a poderosíssima máquina militar alemã – montada sob a conivência das ditas “grandes democracias ocidentais”.

HOLOCAUSTO CONTEMPORÂNEO

Hoje o “mundo democrático” tornou-se um ambiente de preconceito contra os palestinos, vistos como os judeus eram vistos por volta de 1939: são “terroristas” para parte do globo. E o cenário internacional – como no final dos anos 30 – se apresenta como antessala de mais uma guerra mundial cada dia mais iminente desde a derrota do Nazismo, em 1945. 

Israel, sob governos radicais, ocupou praticamente toda a terra palestina e confinou os nativos em um brutal e gigantesco gueto: Gaza. O movimento sionista intensificou sua perseguição e expropriação aos palestinos desde 1946, dois anos antes da própria criação do Estado de Israel, em 1948. As reações (violentas ou não) aos avanços israelenses passaram a ser taxadas unilateralmente como “terroristas”.

Nesse cenário de horror, a denúncia feita pela África do Sul frente ao Tribunal Internacional de Haia contra o genocídio promovido pelos israelenses contra os palestinos é um novo navio St. Louis, levando a bordo as tênues esperanças de uma população sob extermínio. O processo iniciou seus trâmites há cinco dias, em 11 de janeiro, enfrentando tremendas pressões de Israel.

Em 1939 o St. Louis foi a principal oportunidade de clemência para os judeus. Entretanto, Cuba, governada por um áulico dos americanos, Federico Brú, não os aceitou. O navio teve de zarpar novamente, rumo os Estados Unidos, onde o governo sofria pressão de grupos nacionalistas e antijudaicos, que rejeitavam o aumento da concorrência capitalista na dramática saída da Grande Depressão, assim como temiam a presença comunistas – e os judeus eram potenciais capitalistas ousados ou comunistas destemidos.

REPETIÇÃO DE UMA TRAGÉDIA

Os migrantes israelitas do Saint Louis não conseguiram autorização para pisar em solo americano. Roosevelt ainda tentava não pisar nos calos de Hitler. Em desespero, os refugiados judeus viram o navio fazer meia-volta quando enxergavam as luzes de Miami no horizonte. O Canadá também lhes recusou desembarque. Hoje, como em 1939, quase todos os países temem ser solidários ao povo sob holocausto: os palestinos.

No retorno à Europa, conseguiram temerário refúgio. Dos cerca de 900 judeus a bordo, 288 foram recebidos pela Grã-Bretanha e, com uma exceção, vítima de ataque aéreo durante a guerra, sobreviveram. As pessoas desembarcadas do St. Louis que se abrigaram na Bélgica, Holanda e França foram presas e enviadas para campos de concentração e extermínio quando a Alemanha ocupou esses países.

Nos agitados mares desses dias, o Brasil é um dos poucos países com coragem para manifestar solidário à inciativa da África do Sul em tentar frear a matança dos palestinos em Gaza (e na Cisjordânia). A maioria das Nações teme dar porto a esse novo Saint Louis: o processo em Haia. Emblematicamente, até a Alemanha se alinha com Israel, como enxergasse no sionismo de hoje o nazismo de ontem.

Enquanto isso, o governo israelense segue com o extermínio palestino (gente provocadora ou terrorista para os sionistas) sob a conivência mundial, da mesma forma que o governo alemão foi exterminando os judeus (gente capitalista ou comunista para os nazistas) entre 1933 e 1945. Resta a esperança de Haia para uma condenação internacional relevante ao genocídio em curso. 

É pouco provável uma reprimenda à altura e, se acontecer, é muito provável que Israel, com sempre, jamais cumpra qualquer decisão contrária à sua política de expropriação total da terra palestina. Mas a importância essencial dessa inciativa da África do Sul é registrar para a história que nem todos os povos e países concordaram com o massacre em Gaza e na Cisjordânia.

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